Empresa deverá planejar desenvolvimento do entorno de Brasília
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Teck Lee, da Jurong: responsável pelo projeto (Agência O Globo / Givaldo Barbosa)
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BRASÍLIA e MACEIÓ — A decisão do governo do Distrito Federal de
contratar, sem licitação, uma empresa de consultoria do governo de
Cingapura, na Ásia, para projetar o desenvolvimento da Região
Metropolitana de Brasília nos próximos 50 anos gerou controvérsia e
levantou suspeitas. O Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e
parlamentares do DF pediram a imediata suspensão do contrato de R$ 8,6
milhões, assinado no último dia 3 de outubro, em Cingapura. O caso será
julgado pelo Tribunal de Contas local. ...
Por 3 votos a 1, o tribunal rejeitou liminarmente o pedido de suspensão
formulado pelos senadores Cristovam Buarque (PDT) e Rodrigo Rollemberg
(PSB). Em seu voto, o conselheiro-relator Manoel de Andrade chegou a
sinalizar que não vê irregularidades no contrato. Mas os conselheiros
deram prazo de 15 dias ao governo do DF e à Jurong Consultants, como é
chamada a autarquia de Cingapura, para que se manifestem antes do
julgamento de mérito.
O contrato foi fechado com a Terracap, agência controlada pelo governo
do DF, depois de uma rápida tramitação. No dia 25 de setembro três
instâncias da Terracap — diretoria técnica, procuradoria e diretoria
colegiada — chancelaram o negócio, atestando que não era necessário
fazer uma concorrência. No dia seguinte, a contratação foi referendada
pelo conselho de administração da agência. O contrato foi assinado sete
dias depois, em Cingapura, durante viagem do governador Agnelo Queiroz
àquele país.
As formalidades da contratação da Jurong também são questionadas. O
projeto básico, divulgado no portal da transparência do governo do DF na
internet, não é assinado nem tem data. Na versão em inglês do contrato,
até mesmo o valor total do serviço — US$ 4.250.000, mais impostos — foi
escrito com um zero a mais: “US$ 4.2500.000”. Pior: a redação do valor
por extenso, entre parênteses, também é equivocada (four million and two
hundred thousand dollars), com US$ 50 mil a menos.
Em outro trecho, a versão em português diz que os técnicos da Jurong
virão a Brasília pelo menos seis vezes, enquanto a versão em inglês diz
cinco (five). Há ainda outros quatro erros nos valores das parcelas a
serem pagas, na versão em inglês. O contrato menciona que será executado
nos termos do projeto básico e da “proposta da contratada”. Aí há outro
problema: a minuta de proposta da Jurong informa que os pagamentos pelo
serviço serão feitos no Peru. De acordo com o presidente da Terracap,
Antonio Carlos Lins, trata-se de um erro de redação e o dinheiro será
depositado no Brasil.
A opção do governo do DF pela inexigibilidade de licitação foi atacada.
Cristovam e Rollemberg consideram que haveria outras empresas de
consultoria interessadas em participar de uma eventual licitação. Em
defesa de sua escolha, o governo do DF diz que quer fomentar o
crescimento econômico nas próximas décadas. E que buscou o que há de
melhor no planeta em termos de consultoria para esse fim.
Lins afirma que o exemplo de Cingapura fala por si só: a cidade-estado
de cinco milhões de habitantes é um dos tigres asiáticos e tem hoje um
dos maiores PIBs (Produto Interno Bruto) per capita do mundo. Ascendeu
economicamente em poucas décadas, após se tornar independente da
Malásia, em 1965. Em 2008, a consultoria cingapuriana foi contratada
pelo governo de Minas Gerais, onde projetou a rodovia que liga o
aeroporto de Confins a Belo Horizonte. Indagado sobre o motivo da
contratação da Jurong, Lins é categórico:
— Porque é a melhor do mundo.
A Jurong deverá apontar caminhos para o desenvolvimento da região
metropolitana de Brasília, em quatro polos fora do Plano Piloto —
portanto, fora da área tombada como patrimônio mundial da humanidade,
desde 1987, pela Unesco.
Um deles prevê a construção de um aeroporto de cargas. Os demais
envolvem a criação de um centro financeiro internacional, um polo
logístico e a ampliação de um polo empresarial. Pelo contrato, está
prevista a elaboração de um plano estratégico e estrutural do DF e
quatro planos diretores conceituais.
O caso entrou na briga política local: Lins diz que Rollemberg está de
olho na sucessão de Agnelo. O senador, por sua vez, não poupa críticas
ao governador:
— É muito estranho e esquisito que, em meio ao clamor por transparência
que existe hoje, o governador assine um contrato de forma obscura,
quase clandestina, sem ninguém saber nem ser consultado — diz
Rollemberg.
O presidente da Terracap acusa o Instituto dos Arquitetos do Brasil
(IAB), que se manifestou contra o projeto, de corporativismo. Uma equipe
de 14 técnicos da Jurong passou a última semana em Brasília, na
primeira das cinco — ou seis — visitas previstas no contrato. Cerca de
30 servidores do governo do DF ajudarão à Jurong.
— Não estamos aqui para ensinar, mas para dividir conhecimento. O mundo
está ficando menor, vivemos numa vila global. Planejamento para nós é
muito importante — disse o planejador-chefe da Jurong, Raphael Chua Teck
Lee.
Arquitetos questionam capacidade da Jurong
No XXIV Congresso Panamericano de Arquitetos que ocorreu durante a
última semana em Maceió, o plano para projetar o entorno de Brasília foi
o assunto mais comentado e despertou a ira de profissionais brasileiros
e estrangeiros. A direção do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB)
discutiu medidas para impedir que ele avance. E um documento assinado
pela Federação Panamericana de Associações de Arquitetos (FPAA) em
repúdio à parceria com a Jurong, empresa de Cingapura, elaborado ao
final do evento, será apresentado à Unesco e à União Internacional de
Arquitetos (UIA), ligada à agência das Nações Unidas.
O presidente do IAB nacional, Sérgio Magalhães, espera a intervenção
dos organismos internacionais no campo diplomático, com a justificativa
de que Brasília é Patrimônio da Humanidade, título concedido pela Unesco
há 25 anos. Uma das críticas é que Cingapura não tem afinidades
culturais com o Brasil e que se trata de um lugar com restrições às
liberdades individuais, enquanto a capital brasileira, projetada por
Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, é um símbolo da democracia e expressão do
modernismo internacional.
— O reconhecimento de Brasília como Patrimônio da Humanidade cria um
compromisso que é compartilhado também entre o governo brasileiro e a
comunidade internacional. E, no entendimento contemporâneo, a cidade é a
sua expressão cultural, fruto dos agentes locais. Tal expressão precisa
ser considerada no urbanismo. O seu planejamento só faz sentido quando
está intrinsecamente associado à população — diz Magalhães.
Os questionamentos abrangem a capacidade da Jurong em planejar uma
cidade brasileira tão peculiar em sua arquitetura-urbanismo, com
dimensões sociais, econômicas, culturais e políticas próprias. Presente
ao congresso, o presidente da UIA, o arquiteto francês Albert Dubler,
critica o plano:
— Para arquitetos do mundo inteiro, Brasília é um exemplo. Não sei para
quem Cingapura é um exemplo. É como se para fazer um restaurante na
França chamássemos o McDonald’s.
Brasileiros qualificados
O arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, chama de lamentável a medida.
Ele participou da construção de Brasília, é amigo de Oscar Niemeyer e é
considerado um dos maiores arquitetos brasileiros.
— Acho lamentável uma proposta para acompanhar o planejamento da cidade
por 50 anos. Não existe quem seja vidente ou faça ficção cientifica. E
ainda é um planejamento que envolve um país que não tem afinidades
culturais conosco — avalia Lelé.
No documento que será apresentado à Unesco, a FPAA expressa sua
preocupação “quanto às consequências negativas — e certamente
irremediáveis — à cultura americana e universal da intervenção de uma
empresa de Cingapura para planejar os próximos cinquenta anos de
Brasília”.
O documento ainda destaca a qualificação dos arquitetos e urbanistas
brasileiros, que ficaram de fora, e que o planejamento territorial e
urbano “é tarefa indissociável do exercício da soberania política”.
Fonte: O Globo - 02/12/2012
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